Licença poética e suas possibilidades em 10 exemplos

Silhueta de muher com peixes e silhueta de homem com pássaros. A Chuva e o Sol, páginas 20 e 21. Imagem ilustrativa texto licença poética.

Assim, o autor mostra que tem tanto domínio das palavras que até brinca com elas. A propósito, apesar do nome, saiba que esse recurso aparece não só na poesia, mas em qualquer meio em que haja espaço para ser criativo.

E não estamos falando aqui apenas sobre transgredir a gramática. Dá para ir muito além disso. É possível também acontecer a desconstrução de estruturas literárias consagradas.

Licença poética não é o mesmo que escrever errado

Bem, já sabemos que a espontaneidade é característica importante para a autenticidade de uma obra. Entendemos também que, na literatura, não existe isso de “certo” e “errado”.

Então, em alguns casos, o autor deixa de lado certas formalidades para se aproximar da realidade do leitor. Assim, quem lê assimila suas palavras e as entende com mais facilidade.

No entanto, cuidado! É importante não confundir o que estamos falando aqui com a com falta de conhecimento do português correto ou dos estilos literários. A licença poética diz respeito a escolhas estilísticas conscientes.

Para romper normas gramaticais, sintáticas, semânticas etc., é preciso, antes de tudo, estudá-las e conhecer suas possibilidades. Ao dominar as linguagens e os estilos, as ideias fluem com mais naturalidade.

Em outras palavras, para quebrar regras, é preciso saber quais regras você está quebrando. Caso contrário, está apenas arranjando uma desculpa para seus erros de escrita.

Continue lendo e veja algumas possibilidades.

1. Personificação

Animais, objetos ou qualquer outro ser assume características humanas.

Em A Chuva e o Sol, os elementos da natureza são amigos, conversam e têm sentimentos.

Quando chove — plin, plin, plin — e as pessoas abrem seus guarda-chuvas, a Chuva pensa: Um buquê de flores só pra mim!.

(…)

Quando faz aquele calorão e as pessoas se abanam com o que têm nas mãos — leque, revista, jornal —, o Sol pensa: Adoro ser cumprimentado assim!”.

A Chuva e o Sol

2. Métrica irregular

Comum na poesia, as palavras e os versos fogem da forma comum, priorizando o ritmo do texto.

Boa parte das palavras nos poemas de Brasiláfrica são separadas de forma cadenciada. A intenção é dar ao leitor a sensação de ouvir a batida de um tambor.

Diziam que as pedrinhas daque

la estrada escon

diam

filhotes de vulcão.

Por isso, o miúdo

Kahitu, ao passar

por elas, ou vi a

o tam

bor

de seu coração.

Brasiláfrica

3. Suspensão da descrença

Autores de ficção criam cenas impossíveis para a vida real. Os leitores e ouvintes sabem disso, mas fingem ignorância e cancelam seus julgamentos em troca de entretenimento, emoção e fantasia. É um acordo entre as partes.

A história de Muntara, a guerreira se passa em um pós-apocalipse, com elementos de fantasia. Em uma passagem, a protagonista se transforma em égua, depois volta à forma original, inclusive com as roupas que estava antes.

As suas irmãs deram risada de satisfação ao ver a menina transfigurada em égua. Uma espreguiçada e pronto! O corpo da garota já não ostentava vestígios de sua forma animal.

Muntara

4. Presente histórico

Acontecimentos do passado são descritos no tempo presente, tornando aquilo que está sendo narrado mais próximo do leitor ou ouvinte.

A narrativa de O dono do cinema alterna constantemente entre passado e presente. Muitas vezes, dentro da mesma cena, como nos trechos destacados abaixo.

Pior que Américo tinha toda razão. E ele continuou, todo, todo.

(…)

E aqui Américo se calou. Hoje ele está com todas as razões.

O dono do cinema

5. Neologismo

Uma palavra ou expressão ganha um significado diferente do original. Ou então, é inventado um termo para uma coisa que os vocábulos que já existem não conseguem definir.

Panapaná é um coletivo, mas em Tataranha e Panapaná, a palavra é usada para dar nome a uma borboleta apenas. O autor usou essa licença poética para priorizar a sonoridade.

Abre asa, paná.

 Fecha asa, paná

Panapaná é borboleta,

Pode voar!

Tatarana e Panapaná

6. Ambiguidade

O fim de uma palavra e o começo de outra formam uma nova, ampliando o significado do termo.

Além do próprio título, o livro Ainda uma flor resta traz trechos em que as palavras ganham um novo sentido.

E a Amazônia, reflorestará?

Ainda uma flor resta.

7. Regionalismo

Busca escrever exatamente do jeito que o povo de uma região ou contexto social fala, e não de acordo com a norma culta. Isso inclui sotaques e gírias, além de ser uma forma indicar falta de escolaridade.

É o caso de Metade pai metade mundo, que conta a história de uma família que sai da roça para morar na cidade grande. No trecho abaixo, o personagem está falando sobre rúcula.

Lembrei das ruca e concordei com ela.

Capa do livro Metade pai metade mundo.

8. Rima falsa

Em tese, os versos rimados precisam terminar com a exata mesma sonoridade. Ou seja, não podemos combinar singular com plural, som fechado com aberto, nem tônico com átono.

No entanto, fazer rimas perfeitas não é a única forma de dar musicalidade aos versos. Em alguns casos, basta que o som seja parecido, como no terceiro verso da estrofe abaixo, de Gato, sapato, bicho do mato.

O vagaroso caracol

Convidou o rouxinol

Pra dançar o rock and roll,

Em lá bemol.

Capa do livro Gato, sapato, bicho do mato.

9. Anacronismo

Elementos de outros tempos, normalmente, da atualidade, aparecem em narrativas de épocas em que não poderiam existir.

Em Taya e o espelho da Baba Yaga, uma cabana em meio à neve da Rússia antiga tem um espelho que funciona como uma sala de bate-papo. A linguagem é típica dos jovens de hoje em dia na Internet.

Apavorada, Taya interrompeu a conversa e digitou:

> Belarmino, querido. A conversa está ótima, mas tenho de ir. Beijos.

> Cedo assim?

> Baba Yaga deve estar quase chegando. Conversamos de novo na segunda-feira. Mesmo horário?

> Mesmo horário. Beijo. E bom fim de semana.

Taya apertou o botão na moldura e, lentamente, a tela retornou a sua aparência original.

Taya e o espelho da Baba Yaga.

10. Figuras de linguagem

Metáfora, analogia, sinestesia, hipérbole e outras são muito comuns na literatura. Na poesia, então, é praticamente impossível que não ocorram.

As poesias de O mistério de todas as coisas brincam com significados concretos para mexer com a imaginação das crianças.

Te desejo hoje o abraço de um livro,

o silêncio da palavra tristeza

e que possamos mergulhar juntos no

oceano da imaginação.

O mistério de todas as coisas.

Para assuntos além de licença poética…

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